EDSON STROGULSKI
Felizmente, a mídia tem pautado o tema do racismo estrutural com mais frequência nos últimos tempos. Entretanto, o objeto de análise mais comum são os problemas que envolvem a vida adulta, como ausência de negros em espaços de poder, em ocupações de maior salário, integrando a universidade etc. Embora o exame do tema sob este prisma seja importante, esquece-se de um enfoque a partir do qual talvez possamos endereçar uma viável solução: como o racismo estrutural se expressa no âmbito dos direitos da criança e do adolescente.
O Conselho Tutelar, neste Dia da Consciência Negra que coincide casualmente com o Dia Internacional da Criança e do Adolescente, pode dar sua contribuição a partir de sua experiência, considerando também sua função institucional, a fim de que a sociedade se entenda de uma vez por todas que a solução para o problema desigualdade do país passa pela inclusão do negro desde sua infância num projeto de nação com vistas à superação do subdesenvolvimento e da dependência desta república rentista.
Estudos recentes demonstram a importância do desenvolvimento pleno desde a primeira infância para que o indivíduo venha a se tornar um adulto com mais chances de alcançar suas plenas potencialidades. Entretanto, é justamente nesta faixa etária que o país não tem conseguido efetivar os direitos elementares da criança, especialmente o acesso à educação de crianças vulneráveis dentre as quais, sabe-se, que em sua maioria, são negras, consoante dados que podem ser acessados no site Todos Pela Educação.
De outra parte, a partir da atuação do Conselho Tutelar, percebe-se que a mazela do racismo estrutural se expressa de forma muito evidente no campo do acesso a direitos da criança e do adolescente também quando o tema é sobre qualidade da educação. A violação de direitos na área infanto-juvenil tem um pano de fundo que precisa ser exposto: o fato de crianças pobres, principalmente negras, ainda ter uma educação de muito baixa qualidade comparativamente, bastando ver por exemplo a ausência de crianças negras em escolas particulares.
As reportagens do Uol e do Diário do Nordeste são bastante elucidativas para mostrar como as crianças negras são a minoria nesses espaços. E se vermos o ranking do ENEM, perceberemos que também tais escolas particulares são as que ocupam os melhores colocações, conforme reportagem da site Clicrbs. Assim, outra conclusão não será possível que não a que negros receberão uma educação de não tão boa qualidade, o que se expressará na sua formação e colocação no mercado de trabalho.
Sem conseguirmos romper com esse ciclo fechado que impede que as crianças negras tenham acesso à educação de qualidade, já que a escola pública está cada vez mais em piores condições, não será possível romper o ciclo da pobreza que engendra tantas outras mazelas sociais, principalmente a de uma sociedade de extremos de desigualdade, conflito e precariedade. E para tanto, outra solução não vislumbramos se não um projeto de país que vá para além de políticas públicas pontuais que não atacam os problemas centrais da república, como a dívida pública, melhor otimização do orçamento público, conforme determina o comando do artigo 227 da Constituição Federal, único momento em que se utiliza a expressão prioridade absoluta, e que deve fundamentar a destinação de maiores recursos para o campo infanto-juvenil.
A discussão de um projeto para o país que leve em conta o interesse dos brasileiros, deve necessariamente olhar para as crianças negras que só podem ser efetivamente incluídas com políticas no campo da macro e microeconomia. Até quando por exemplo prorrogaremos medidas como as que fez os EUA prosperar como a reforma agrária. Lembremos que no Brasil a Lei de Terras cujo principal objetivo foi regulamentar o acesso à terra data de 1850, portanto 38 anos os brancos tiveram acesso antes dos negros que foram considerados livres somente em 1888. E este “livre” com todas as aspas possíveis, já que foram largados à própria sorte, sem prepará-los ou muitos tiveram que voltar para empregos precários e se refugiar em torno das cidades, criando-se o processo de favelização do país.
A ausência de uma política que inclua realmente o negro economicamente, como já defendeu o sociólogo Guerreiro Ramos, incluindo a tese do professor Silvio Almeida de que a solução para superarmos o subdesenvolvimento do país passa pela inclusão social do negro, sendo este pois parte da solução para cumprirmos os objetivos insculpidos na Constituição Federal de construirmos uma sociedade justa, livre, solidária, livre de preconceitos, promovendo o desenvolvimento nacional e, consequentemente o bem de todos.
O tempo vai passando e a sociedade brasileira vai adiando o acerto de contas com seu passado, com sua dívida histórica com o povo negro escravizado o qual construiu grande parte da riqueza deste país, e da qual alguns poucos por meio do rentismo (mecanismo da dívida pública) ainda seguem usufruindo. No projeto de país que precisamos defender, reformas estruturantes, como a reforma agrária, urbana, educacional, bancária, auditoria da dívida pública e outras reformas de base defendidas desde João Goulart e suspensas pela intervenção militar de 1964, que deveriam ser realizadas para equalizar minimamente toda a violação sistemática dos direitos humanos vão deixando de ser pautadas, demonstrando a carência de uma vanguarda política que coloque em cheque o sistema político atual colapsado já que estruturado numa economia e numa sociabilidade que retroalimenta o processo do racismo estrutural.
Enquanto esta vanguarda política não se forma e a sociedade brasileira não amadurece para pautar os temais decisivos para transformarmos a realidade nacional, seguimos nesta árdua tarefa de contribuir na formação da consciência do povo brasileiro, rememorando, por fim, o verso imortalizado na canção Sorriso Negro, interpretada brilhantemente por Dona Ivone Lara com participação especial de Jorge Ben Jor, de que “Negro é a raiz da liberdade…”, cuja ideia poética poderia muito bem sintetizar o significado do dia da consciência negra, especialmente em tempos em que a desigualdade ficou ainda mais evidente, tendo em vista a crise econômica aprofundada pela pandemia.
Passados 133 anos do fim da escravidão e analisado o contínuo impacto nos dias atuais dos três séculos de sua duração no Brasil (300 anos), embora se tenha avançado em alguns aspectos, há muito o que se conquistar em termos de avanço civilizatório para que a chaga do racismo estrutural deixe de engendrar as relações sociais, econômicas e políticas seja em nível local ou mundial, na vida adulta e também para nossas crianças e adolescentes.
Edson Strogulski, secretário estadual da igualdade social do partido Solidariedade RS, Conselheiro Tutelar e Vereador da Cidade de Porto Alegre