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O pior cenário prevaleceu!
Diógenes Sandim

Diógenes Sandim

Médico Sanitarista e consultor da Fundação 1º de Maio

Uma análise sobre o primeiro ano da pandemia de coronavírus no Brasil

Era o começo do ano de 2020, não tínhamos muitos motivos para comemorar, afinal estávamos entrando no segundo ano do inevitável desgoverno do Presidente Jair Messias Bolsonaro. Sem saber o que nos aguardava durante o ano, assistimos no mês de fevereiro, na Praça da Apoteose, o desfile das Escolas de Samba na Marquês da Sapucaí, no Rio de Janeiro. Foi como uma súplica, de quem já previa um mau agouro, que reverberava nos quatro cantos da cidade, o hino da campeã daquele carnaval:

“Ora yê yê ô oxum!  (é um cumprimento que significa olha por nós mãezinha)                   

Seu dourado tem axé

Faz o seu quilombo no Abaeté

Quem lava a alma dessa gente 

Veste ouro…”

Este cumprimento evocava a proteção daquela que tinha axé (luz), para as mulheres negras que faziam da lagoa do Abaeté seu “quilombo” para a compra de sua liberdade, e em solidariedade, para ajudar outras companheiras. Eram conhecidas por “ganhadeiras do Abaeté”.

Mas, no que estes versos preconizavam mais um sofrimento para nosso povo? 

Não demorou muito, começamos a receber notícias de um estranho vírus que havia começado a contaminar a população de Wuhan, na China. No primeiro momento não foi levado tanto a sério tais informações, haja vista, ser a China um foco dessas contaminações que depois, como foi com o surto da Gripe Viária e da SARS, não prosperaram e não evoluíram para um grande problema epidemiológico para o mundo. 

Ledo engano!!! 

Após confirmação da morte de 200 pessoas na China, onde quase 12 mil casos haviam sido registrados, a OMS anunciou EMERGÊNCIA DE SAÚDE GLOBAL. 

No dia 11 de março de 2020, Sr. Tedros Adhanom, diretor geral da OMS, elevou o estado da contaminação à PANDEMIA pelo novo Corona Vírus (Sars-Cov-2). A mudança de classificação não se deveu à gravidade da doença, e sim a disseminação geográfica rápida que o Covid-19 havia até então apresentado. 

O primeiro caso registrado de covid no Brasil ocorreu em São Paulo. Um homem de 61 anos, residente da capital paulista, tinha feito uma viagem para a Itália entre 9 e 21 de fevereiro de 2020, é considerado o primeiro registro de contaminação da doença no país. Outros casos foram desfilando nas planilhas epidemiológicas do SUS, e quase a totalidade eram de cidadãos de classe média que, visitando outros países, trouxeram o coronavírus por via aérea.

São Paulo, no dia 14 de março de 2020, registrou a primeira morte pelo novo coronavírus no Brasil, internado em um hospital privado, era homem com 62 anos e portador de comorbidades.

Naquele momento estávamos atentos no desenrolar dos acontecimentos. A OMS estava alertando todos os governantes do mundo que a orientação dada pela China para doença não era exagerada, pois estávamos frente a um vírus com poderes dispersivos nunca visto antes, e que a única medida a ser tomada para impedir a lotação das UTIS e leitos hospitalares – bem como espaços nos cemitérios – eram o isolamento, uso de máscaras, lavar constantemente as mãos e o distanciamento social. Medidas que veriam exigir uma certa consciência sanitária das pessoas, que não tendo maiores informações deveriam se espelhar nas figuras públicas, representantes políticos, na ciência e autoridades da saúde.

Fiquei agradavelmente surpreso com a comportamento do então ministro da saúde, Dr. Henrique Mandetta, frente aos primeiros acontecimentos que imprimiam rumos à pandemia do novo Coronavírus em nosso país. Como autoridade máxima da nação para questões de Saúde Pública, ocupou naturalmente seu espaço no palco da crise inesperada para todo o mundo. Interpretou bem seu papel como líder do Sistema Único de Saúde (SUS), enalteceu o SUS como um dos sistemas de saúde mais bem organizados do mundo para dar uma resposta à altura do inimigo invisível. 

Todos os dias, Mandetta estava presente com sua equipe técnica para entrevista com a imprensa, sabendo ser esta estratégica para o sucesso no campo da comunicação de uma guerra que começávamos a travar. Só que não sabia a que ponto podia chegar à “ideologia” que tomara conta do país em 2018. O Negacionismo veio ao mundo para negar a ciência, a política, os valores e a ética humanista. De repente fomos todos surpreendidos com uma rede de desinformação negando todos os protocolos, ditados pela ciência, para enfrentar a pandemia do Coronavírus. 

Teses esdruxulas tinham ressonância nas falas do Presidente, de seus filhos e mais alguns outros políticos negacionistas, num comportamento público que buscava constantemente desinformar a população sobre como se comportar para prevenção da doença. Nosso país encontrava, já, com uma incidência galopante da doença com alta disseminação nas periferias das grandes cidades junto à população negra e mais pobres. 

As orientações corretas dadas pelo Ministério da Saúde, e pelo SUS, eram sistematicamente boicotadas pelo Presidente e seus asseclas, promovendo aglomerações sem máscaras e atacando a imprensa como mentirosa e responsável pelo pânico quanto à doença, que na verdade não passava de uma gripezinha. 

No dia 28 de março de 2020, ainda quando o Brasil registrava apenas 4 mil infectados e 114 mortos, a imprensa reporta que o então Ministro Henrique Mandetta pediu uma audiência com o Presidente Bolsonaro e levou três cenários, com detalhes epidemiológicos das possíveis evoluções da pandemia no Brasil.

Primeiro cenário, o mais otimista. Se cumpríssemos todos os protocolos preconizados pela OMS e pelo SUS, que por ser organizado de forma sistêmica, alcançaríamos bons resultados e poderíamos ter no máximo 30.000 mortes até o final de 2020.

Segundo cenário, intermediário. Já com alguns percalços com dificuldades de equipamentos e profissionais para atender os doentes, tendo alguns estados com maior incidência, esses resultados para até o final do ano seria em um total de 60 mil à 80 mil mortos. 

E no último cenário, o mais pessimista. Havendo desregulação de todo o sistema, perdendo o controle dos leitos hospitalares e de UTI, poderíamos ter até o final de 2020 em torno de 180.000 mortos. 

Já terminamos o ano de 2020, e hoje sabemos que esse governo conseguiu ultrapassar o número de morte previsto no cenário mais pessimista, chegamos a quase 195.000 mortes até o momento de publicação deste artigo.

Agora, após dois meses, já em 2021, o Brasil tem o seu pior momento da pandemia quando a doença está regredindo no mundo todo.

Ausência de comando do governo federal e seus arroubos contra o isolamento social, nos remete a uma chance de um colapso nacional, tanto de leitos hospitalares quanto de covas nos cemitérios. Podemos chegar próximo de meio milhão de mortos em nosso país até alcançarmos uma boa cobertura vacinal. 

A população tem que acordar para a dimensão de nossa tragédia. Ultrapassamos 250.000 mortes, estamos vivendo um novo repique de incidência e de mortes em todos os Estados da União. Não temos vacinas suficiente para operar nosso sistema logístico de vacinação, que poderia fazer entre 3,5 milhões a 4 milhões de vacina por dia, e estamos fazendo em torno de 150.000/dia, neste ritmo o país levará três anos e meio para concluir o trabalho. 

Queremos terminar nosso artigo evocando mais uma vez o hino das “ganhadeiras da lagoa do Abaeté”   

“Ora yê yê ô oxum!  (olha por nós mãezinha)                  

…Faz seu quilombo no Abaeté… 

…Quem lava a alma dessa gente

Veste ouro…”

Os homens negros são os que mais morrem pelo Covid-19 no país. São 250 óbitos para cada 100 mil habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes para cada 100.000. Dados são do levantamento da ONG Instituto Polis. O mesmo ocorre com as mulheres negras, foram 140 mortes por 100mil habitantes, contra 85 por 100mil habitantes entre as brancas.

Muitas coisas poderiam e podem ser feitas para mitigar esse número exponencial de mortes em nosso país, estamos vivendo um repique de onda em direção a uma tragédia colossal e os responsáveis por esse descalabro sanitário devem pagar por este cenário dramático para nosso povo.