Para início de conversa é necessário refletir alguns aspectos: Qual significado de fato da “Abolição da Escravatura?” Quem são estes povos escravizados? Como eles estão inseridos no contexto atual?
Por muito anos, a abolição da escravatura foi interpretada por historiadores como um gesto de benevolência da princesa e como uma ação realizada por indivíduos brancos e sem envolvimento direto com a luta abolicionista. Entretanto, tanto o movimento negro como os historiadores que revisitaram a história da abolição passaram a censurar essa visão, apontando que a lei foi fruto de inúmeras lutas realizadas por ex pessoas escravizadas, escravos da época e pessoas que se compeliram no movimento abolicionista por décadas. Então, quem são esses povos escravizados?
De acordo com o historiador francês Fernand Braudel (1978) a escravidão era endêmica na África e fazia parte da estrutura da vida cotidiana. “A escravidão surgiu de formas diferentes em sociedades diferentes: havia escravos da corte, escravos incorporados em exércitos principescos, escravos domésticos e de criadagem, escravos trabalhando na terra, na indústria, como correios e intermediários, até mesmo como comerciantes”
Mas o que a Ancestralidade tem a ver com as leis trabalhistas em dias atuais? A ancestralidade é fonte de vida, sabedoria, identidade, pertencimento e criatividade, é o fio que tece passado, presente e futuro, formando
uma teia de relações que conecta a humanidade. Os povos escravizados foram povos negros que percebem, sentem e vivem a escravidão a partir da sua ancestralidade, até os dias de hoje.
Ainda refletindo: Onde estão inseridos estes povos nos dias atuais? Libertar o negro escravo não bastou para dignifica-lo ante toda a circunstância histórico-cultural da sociedade brasileira. Com isso o desprezo ao trabalho, principalmente o manual por trazer a lembrança da época da escravidão, começou a se dissipar e fazer com que a sociedade trabalhadora começasse a mudar o seu opinião quanto à importância do trabalho.
A esperança popular surge com o fim da República Velha, pois em 1930 Getúlio Vargas assume o comando da nação lançando uma ideia política de valorização do trabalhador, trocando um Estado parcial, opressor e arbitrário por um que se apresenta como equitativo, neutro e acima dos interesses de classe. Getúlio Vargas encontrou uma população desprovida de importância como cidadão e proporcionou a eles uma forma de mudar esse ponto de vista através do trabalho.
A extrema pobreza e a sensação de injustiça social afligiam a nação, assim Vargas direcionou sua política, como meio de superar a pobreza, individual e coletiva, valorizando o trabalho, de modo que por meio deste o operário fosse elevado a categoria de cidadão. O trabalho não seria mais visto como um castigo ou a condição inerente aos menos beneficiados, ele tinha a função de diferenciar o homem honesto do desocupado, ou seja, ele dignificava o homem, integrando-o à sociedade em que vivia.
Neste sentido, passo importante na tentativa de dignificação do trabalho foi a criação a Carteira Profissional, que originou a atual Carteira de Trabalho e Previdência Social, através do Decreto nº 21.175/32, pois o trabalhador passou a ter uma identidade, ou seja, ele passou a ser alguém. A Carteira Profissional era um atestado de conduta do trabalhador, porque nela havia espaços para anotações policiais, as quais praticamente obrigavam o trabalhador a tê-la sempre consigo para não ser acusado de inatividade.
Na história do Brasil há mais anos de escravidão do que de trabalho remunerado livre, o qual por muito tempo fora considerado indigno, especialmente por trazer a lembrança da época da escravatura.
A “abolição da escravatura” (1888) ocorreu apenas um século antes da atual Constituição Brasileira (1988), a qual traz em seu cerne a elevação do trabalho como direito fundamental para o exercício da plena cidadania e forma de dignificação do homem perante a sociedade. A Constituição Federal de 1988 expressa em seu art. 1º que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o valor social do trabalho, conferindo-lhe em seu art. 6º o status de Direito Social.
A luta pela dignidade do trabalhador é histórica. O golpe foi saudado pelo jornal O Estado de S. Paulo como o fim da Era Vargas 64, mas a Consolidação das Leis do Trabalho não acabou. Além da repressão a sindicatos e greves, os economistas da ditadura encontraram uma maneira mais “técnica” para rebaixar salários: uma fórmula de correção de salários que não os protegia da inflação, mesmo quando seu cálculo não era manipulado (como em 1973). Depois de cair 35% entre 1964 e 1967, o salário mínimo despencou mais de 40% entre 1979 e 1984.
A luta para civilizar as relações de trabalho no último país ocidental a revogar a escravidão parecia ter tido uma vitória definitiva com a Constituição de 1988. Mas seu sentido como “Constituição Cidadã” não é só reformado, é revertido em 2017, um século depois de que nossa “questão social” foi chamada de “caso de polícia”.
Em contexto de grande desemprego, a possiblidade de trocar o legislado pelo negociado em contratos “livres” se assemelha à liberdade da raposa no galinheiro. Não há espaço para discutir com detalhe a reforma trabalhista, mas o sentido da mesma é o de humilhar o trabalhador à condição de um “insumo” barato, rebaixando os padrões de civilidade em nossa vida social.