Colocada em pauta pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a PEC que altera a composição do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) gerou forte discordância entre parlamentares e associações de membros do Ministério Público, que alertam para a possibilidade de aumento da interferência política na instituição.
Especialistas consultados pela Folha também divergem a respeito da proposta.
Após pressão de associações de procuradores e uma tentativa inicial de votar a PEC que indicou o risco de a proposta ser barrada na Câmara, líderes partidários aliados de Lira costuraram um novo texto amenizando alguns dos pontos considerados mais problemáticos.
A emenda foi debatida no plenário nesta quinta-feira (14) e pode ser votada na próxima terça (19). Para ser aprovada, uma PEC precisa de ao menos 308 votos dos 513 deputados, em votação em dois turnos.
Qual a origem da proposta e por que ela se tornou motivo de discordância entre parlamentares e procuradores? A PEC, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e relatada pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), atraiu críticas de associações ligadas a promotores e procuradores, que consideravam que abria margem para interferência política no CNMP, órgão responsável por realizar a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do Ministério Público e de seus membros.
Integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato foram alvo de seguidos processos no órgão nos últimos anos.
Quais as principais mudanças propostas na PEC? Segundo a nova proposta, o número de membros do conselho passaria de 14 para 17, saltando de duas para cinco as vagas indicadas pelo Congresso. O Ministério Público poderia escolher sete membros para o CNMP.
Uma das vagas nomeadas pelo Congresso ficaria reservada para um membro do Ministério Público dos estados ou do Distrito Federal e Territórios, que seja ou tenha sido procurador-geral de Justiça.
Essa pessoa ocuparia o cargo de corregedor nacional, uma das funções mais importantes no CNMP. Ele seria, ainda, vice-presidente do conselho, substituto do presidente em sua ausência.
Hoje, o corregedor nacional é eleito pelos membros do conselho em votação secreta. A mudança em sua indicação é considerada pelos procuradores um ataque à independência do Ministério Público.
A proposta altera funções do conselho do Ministério Público? Sim. Um ponto sensível diz respeito a um alargamento das atividades do CNMP, que originalmente controla apenas a atuação administrativa e financeira do órgão, assim como o cumprimento dos deveres funcionais de seus membros.
A nova proposta prevê expressamente que o conselho poderá desconstituir atos administrativos que constituam violações do dever funcional dos membros após a devida apuração em procedimento disciplinar, “preservada a independência funcional e assegurada a apreciação judicial”.
A PEC também prevê que o CNMP deverá elaborar, em até 120 dias da promulgação da emenda, o Código de Ética do Ministério Público. Se não for respeitado o prazo, caberá ao Congresso dispor sobre a matéria.
Quais os argumentos dos deputados para a aprovação da PEC? Enquanto procuradores alegam que a PEC é inconstitucional por fragilizar a independência do Ministério Público, parlamentares favoráveis à proposta argumentam que é necessário aperfeiçoar o sistema de controle da instituição e dizem que o CNMP não pune devidamente membros que cometem infrações.
Nos últimos anos, a divulgação dos métodos dos procuradores da Lava Jato provocou grande insatisfação em parte da sociedade civil e gerou punição para integrantes da força-tarefa, como o procurador Deltan Dallagnol.
Levantamento do conselho mostra que, de 2005 a 2019, o órgão instaurou 18,35 processos administrativos disciplinares para cada mil membros do Ministério Público. No período, julgou 16,42 processos para cada mil membros da instituição.
Qual a opinião de Arthur Lira, um dos principais defensores da PEC? Para o presidente da Câmara, o CNMP não pune membros da categoria que cometem desvios. Ele diz que integrantes do Ministério Público criaram versões sobre o texto “de uma maneira equivocada”.
“A PEC se propõe a fazer com que a sociedade civil tenha maior participação no CNMP”, afirmou. “Porque o CNMP é um dos órgãos no Brasil que não funcionam com relação a punir seus membros quando eles cometem desvios.”
Lira argumenta que todos os pontos serão abordados para acabar com as versões de “PEC do ministro Gilmar [Mendes, do STF], PEC do fim do não sei o que.”
“Porque também pode ser a PEC do fim da impunidade de um órgão muito forte, necessário e importante para o Brasil, mas que tem uma condição muito especialíssima.”
O presidente da Câmara ressalta que nenhum membro do Ministério Público responde a processo de improbidade. “Porque são eles mesmos que propõem, não vão propor contra eles.”
A PEC, segundo Lira, é importante para que se tenha transparência total nas ações de controle do Ministério Público. “Porque todos nós temos controle externo, menos o Ministério Público.”
Quais os riscos da PEC, segundo seus críticos? Subprocurador-geral da República e ex-membro do CNMP (2009-2013), Mario Bonsaglia defende à Folha que o CNMP tem sido efetivo no controle disciplinar dos membros, e que é, inclusive, mais rigoroso que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
“Nada justifica que, por conta da atuação da extinta força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, se queira penalizar o Ministério Público todo. É algo desproporcional”, diz.
Bonsaglia considera a nomeação do corregedor nacional pelo Congresso o ponto mais criticável da PEC. Ele lembra que a função é de grande importância, por ter o poder de abrir apurações disciplinares e instaurar processos monocraticamente.
“Cria uma insegurança enorme. Ainda que o corregedor a ser indicado seja membro do Ministério Público, há mais de 12.000 membros no país. Isso não eliminaria a insegurança. O corregedor teria uma função extremamente poderosa no conselho”, diz.
O subprocurador afirma que, indicado pelo Congresso, o corregedor poderia ficar em uma posição “muito sensível” aos pleitos de instauração de processos disciplinares por parte de parlamentares.
O colunista da Folha Conrado Hübner, professor de direito constitucional na USP, concorda com a premissa de que o Ministério Público precisa ser reformado, mas afirma que a PEC politiza e, com isso, esvazia a instituição.
“O Ministério Público apresenta disfuncionalidades muito perigosas, sobretudo em relação ao controle dos abusos de poder. É uma premissa compartilhada, que tem como pano de fundo o descalabro da Lava Jato”, diz.
Nesse sentido, ele afirma que a proposta é manca porque não atinge os “abusos gravíssimos” cometidos também pelo Judiciário, como, por exemplo, os do ex-juiz Sergio Moro.
“Basicamente o que a PEC faz é tentar aumentar a intervenção política, a ingerência de deputados nas indicações, deixando à margem discussões que realmente importam.”
Conrado diz que é preciso controlar o Ministério Público com a participação da sociedade civil, sem subordiná-lo ao centrão.
“A PEC não diz nada sobre transparência, sobre controle social, sobre sociedade civil organizada, não fala em ouvidorias, em aperfeiçoar sabatinas para os cargos da cúpula do sistema de Justiça.”
Um dos argumentos contrários à PEC é sobre sua suposta inconstitucionalidade. O que dizem os especialistas? Professor da USP e especialista em Direito Constitucional, o advogado André Ramos Tavares discorda que a PEC seja inconstitucional, como argumentado pelas associações de procuradores.
“Não acho que exista uma interferência, é simplesmente uma questão de controle. A participação do parlamento é importante (…) Alterar o que está em andamento sempre provoca algum tipo de incômodo em alguns”, diz.
Tavares concorda, porém, que a indicação do corregedor pelo Congresso “politiza um pouco”.
“Acredito que temos um problema, sim, mas talvez não de inconstitucionalidade. Não podemos presumir que vai haver pressão”, afirma. O professor diz, ainda, que só a prática poderá mostrar se as alterações da PEC serão positivas.
O advogado Pedro Estevam, professor de Direito Constitucional na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, também não considera a PEC inconstitucional. Ele argumenta que o Ministério Público tem um “poder imenso” e que o controle deve se dar por agentes externos.
“Pode haver emenda que altere a composição do CNMP, no sentido de melhorar o controle externo. A composição acabou sendo muito corporativa, veja o número de integrantes do Ministério Público que fazem parte do conselho”, diz.
Estevam afirma que o ideal seria que a sociedade pudesse controlar mais diretamente a instituição, mas acredita que as indicações pelo parlamento podem avançar no combate ao corporativismo.
O professor diz, ainda, que as críticas a abusos por parte de membros do órgão precisam resultar em mudanças práticas. “Na hora que alguém resolve botar o dedo na ferida e debater a estrutura do Ministério Público, começa ‘ah, não pode’. Tem que testar. A democracia é viva, se não funcionar muda de novo.”
Por: Ana Luiza Albuquerque/ Folha de São Paulo