Com cinco filhos de 2 a 15 anos, Janaína Trindade, de 31 anos, e o marido, Rodrigo de Lima, de 43, dependem da solidariedade de estranhos em Almirante Tamandaré, na região metropolitana de Curitiba. Mas não precisava ser assim. Ela terá que voltar para a fila do Bolsa Família porque teve o benefício bloqueado no mês passado. Ele, que deixou de ser vigia quando sofreu um AVC, tenta, desde 2014, aposentadoria no INSS, mas também aguarda numa fila.
“Pedi ajuda a quem poderia doar alimento, não tenho dinheiro para o mercado. Já mandei as crianças para a casa da avó para terem o que comer. Houve dia em que a gente só teve abóbora e água. A fome dói. E ver os filhos com fome dói ainda mais”, diz Janaína.
Ela e o marido estão entre os três milhões de brasileiros que estão à espera de benefícios sociais e previdenciários numa fila que o governo não consegue reduzir. Deste total, 1,2 milhão de pessoas estão esperando o Bolsa Família. Há ainda 1,8 milhão aguardando aposentadoria ou pensão do INSS, sendo 600 mil pessoas com deficiência ou idosos pobres em busca do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Auxílio perto do fim
As dificuldades de acesso agravam a vulnerabilidade de muitas famílias a pouco mais de um mês do fim do auxílio emergencial para 39,3 milhões de pessoas. Segundo estudos do pesquisador Marcelo Neri, da FGV, a pobreza já atinge 27,7 milhões de brasileiros, o equivalente a 13% da população. Em 2017, segundo sua metodologia, eram 11,2%.
Os problemas sociais, no entanto, foram ignoradas pelo presidente Jair Bolsonaro nos atos antidemocráticos do Sete de Setembro. Os atos agravaram a crise política e criaram mais obstáculos para projetos como o Auxílio Brasil, que o governo pretende colocar no lugar do Bolsa Família para aumentar o alcance e o valor dos repasses. O programa não avançou no Congresso, que aprova o Orçamento.
Desempregada desde o início da pandemia, C.O., de 32 anos, está entre os beneficiários do auxílio emergencial que vivem uma contagem regressiva. Ela usa o benefício para comprar comida, mas na semana passada tinha apenas um pacote de biscoito água e sal para se alimentar. Ela era garçonete e foi demitida no início da pandemia. Teve que entregar o apartamento onde morava e deixar as duas filhas com o ex-marido. Morou na rua por 18 dias e, hoje, vive de favor: um amigo pagou três meses do aluguel de uma casa, na Zona Oeste do Rio. Não há geladeira, fogão ou armários. Só uma cama e um teto. Sem perspectivas, ela só tem pouco mais de um mês para ficar ali.
“Há três dias que não como. Quando consigo fazer um bico, compro biscoito. Estou na luta. Uso a internet da venda da esquina para me inscrever nas vagas. Para mim, o importante é trabalhar, pagar meu teto, ter o que comer. Já estou ficando desesperada”.
Com o clima eleitoral antecipado por Bolsonaro, aumenta a pressão sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, para viabilizar o Auxílio Brasil ou prorrogar o auxílio emergencial até o fim do ano. Mas não é uma solução simples.
Em agosto, o Bolsa Família foi pago a 14,6 milhões de famílias. De acordo com dados do Ministério da Cidadania, havia outras 1.186.755 pessoas que atendem aos critérios do programa no Cadastro Único, mas não foram incluídas por falta de recursos. A proposta de Orçamento para 2022 prevê R$ 34,7 bilhões para 14,7 milhões de famílias. Ou seja: não haveria espaço para zerar a fila nem para aumentar o valor do benefício. Já o Auxílio Brasil, que tem a pretensão de atender a 17 milhões de famílias, tem mais incertezas que definições até o momento. Pelas regras fiscais atuais, não há espaço orçamentário para atingir seus objetivos.
A fila do INSS tem causas estruturais, como falta de investimento em sistemas e em pessoal, deficiências que foram agravadas pelo fechamento de agências por causa da pandemia e uma greve de médicos peritos. Dos 1.500 postos, 200 ainda não reabriram por falta de protocolos de segurança. O governo chegou a prometer zerar a fila do INSS com medidas provisórias para contratação de temporários e pagamento de bônus para servidores agilizarem a análise de processos. Mas as MPs não foram votadas no Congresso e perderam a validade.
Defasagem crescente
A recriação do Ministério do Trabalho e Previdência há um mês ainda não trouxe alento a quem segue na fila. Ademir de Almeida, 64 anos, esperou seis meses pela análise do pedido de aposentadoria por invalidez, o dobro do prazo legal. O pedido feito em fevereiro caiu em “exigência”. E terá de esperar mais.
“Depois da espera, recebi comunicação do INSS solicitando o envio de cópia de todas as anotações das minhas carteiras de trabalho para dar prosseguimento ao processo”, diz o ex-bancário de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, que teve parte da perna esquerda amputada em um acidente, aos 15 anos.
A fila do Bolsa Família é mais complexa. A quinta e última parcela do auxílio emergencial começa a ser depositada em 20 de outubro, com saques até 19 de novembro. O governo precisa definir qual folha de pagamento vai rodar neste mês: a do Bolsa Família tradicional ou de sua versão recauchutada, que depende de confirmação do Congresso.
Para a ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania Letícia Bartholo, a tendência é o novo programa repetir os valores do Bolsa Família em 2022, como está na previsão orçamentária atual: “Isso significa não só que as filas seguirão, mas que o efeito da transferência de renda estará cada vez mais comprometido, pois as linhas (de classificação) e valores dos benefícios estão defasados, descolados da pobreza concreta”.
Para a economista-chefe do banco Bocom BBM, Cecília Machado, o Auxílio Brasil nascerá defasado se sair do papel. “Mesmo não mudando absolutamente nada, o que a gente teve na crise foram mais pessoas entrando em situação de pobreza, fora a inflação. Manter o mesmo orçamento (em 2022) não é consistente com os impactos da crise na população mais pobre”, diz Cecília, que também é professora da FGV. “O valor do benefício está sendo corroído”.
As histórias de quem espera
“Ficou mais difícil”
Com dois filhos e com o marido no trabalho informal, Rosângela Silva, de 44 anos, não consegue acesso ao Bolsa Família nem ao auxílio emergencial, que só recebeu em 2020. Ela diz que não consegue mais nem informação sobre o cadastro no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio, onde mora.
“Muito tempo atrás eu recebia o Bolsa Família. Ajudava bastante, mas há uns dois anos simplesmente cortaram. Logo depois veio a pandemia e tudo ficou mais difícil”, conta a dona de casa.
“Ninguém analisou”
A matemática Aline Martins, de 53 anos, pediu aposentadoria por tempo de serviço em abril de 2019, ainda antes da reforma da Previdência, mas o pedido foi negado pelo INSS após quatro meses. Ela pediu nova análise à Junta de Recursos da Previdência Social, que tem 90 dias para responder, mas nada até agora. Ela diz ter contribuído até maio deste ano, quando fez novo pedido de aposentadoria, agora sob as novas regras. Mas só o que tem até agora é um segundo pedido “em análise”: “Até hoje ninguém analisou meu processo”.
“Sem oportunidade”
Professora desempregada, Rita de Cássia Barros, de 55 anos, atravessou a pandemia com o auxílio emergencial. Mãe solo, a moradora da Zona Oeste do Rio tinha se cadastrado no Bolsa Família, mas nunca recebeu. Agora, a filha completou 18 anos e elas não têm mais direito. O Auxílio Brasil contemplaria jovens até 21 anos incompletos. Sem ele e sem auxílio, Rita teme ficar sem renda até achar trabalho: “Fiquei desempregada no fim de 2019, recebi seguro-desemprego e comecei a procurar trabalho. Com a pandemia, as oportunidades sumiram”.
“Luto e indignação”
Há cinco meses, Liliane dos Santos pediu auxílio-doença para a irmã, internada com Covid-19 em São Paulo. Lorena, de 30 anos, morreu há duas semanas. Antes de o benefício sair.
“Liguei várias vezes para o INSS até conseguir agendamento. Levei os laudos no início de junho. Disseram que ligariam marcando a perícia no hospital”, conta Liliane, que nunca recebeu o telefonema e descobriu pelo aplicativo do INSS que o pedido foi negado por falta à perícia. “Ela estava na UTI, como poderia comparecer? Com o luto vem um sentimento de indignação”.
Por: Agência O Globo